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LIÇÕES GEOLÓGICAS DA ABERTURA DA VIA ANCHIETA

(texto extraído do livro do autor A GRANDE BARREIRA DA SERRA DO MAR – da Trilha dos Tupiniquins à Rodovia dos Imigrantes)

Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos

O fantástico ritmo do desenvolvimento econômico do Estado de São Paulo mais uma vez, já a partir especialmente do fim dos anos 20, exigiu que as condições de transporte entre a capital e o porto atendessem sua crescente e cada vez mais diversificada demanda de exportação e importação de produtos agrícolas, matérias-primas e bens manufaturados.

Agora um novo meio de transporte, versátil, ágil, porta-a-porta, se impunha como fundamental ao comércio, à indústria e à agricultura paulista: o caminhão. Não em declarada competição à ferrovia, mas em uma então argumentada complementariedade logística.

Embora pavimentado, o Caminho do Mar não atendia tecnicamente - sobretudo por sua condição de pista única, seu pequeno raio mínimo de curvatura e por suas acentuadas rampas - às condições ideais de rodagem do caminhão, nem ao volume de tráfego real e reprimido. Já em 1934, o tráfego calculado no Caminho do Mar correspondia a uma média mensal de 18.500 veículos automotores, 6.700 dos quais eram caminhões. No início da década de 30, o Estado de São Paulo já contava com 70 mil veículos automotores, dos quais 26 mil eram caminhões.

Em 1925, o engenheiro Teixeira Soares afirmava em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo:

“Entretanto, o que em qualquer hipótese, qualquer que seja a solução adotada, não pode passar por mais tempo sem que se atenda, é dotar São Paulo de uma via de comunicação com o seu porto normal, que é Santos, tal que torne a economia e o comércio dessa Capital a coberto de emergências que possam surgir, derivadas seja de erros ou imprudências, seja de circunstâncias anormais.

Essa via de comunicação de capacidade ilimitada será constituída pela estrada de rodagem, não a estrada de passeio ou de pequeno tráfego local, mas um tipo de estrada que já vai surgindo no estrangeiro, cobrindo a Europa e os Estados Unidos de uma vasta rede de veículos: a estrada de rodagem para tráfego intenso e pesado.

Tecnicamente, isto se resume numa questão de pavimentação. Aí é que está o ponto principal. E note que neste particular não temos que embarcar em aventura duvidosa, em regime de ensaios. É simplesmente aproveitar a experiência alheia, comprovada pelos resultados práticos. Será uma estrada de construção dispendiosa, mas em compensação de custeio mínimo.”

A partir dessa época, já não se discute a necessidade de uma nova e moderna transposição rodoviária da Serra, mas sim como seria o empreendimento, qual seu melhor traçado e outras questões de contorno.

Vários projetos vão se sucedendo, como o de Luiz Romero Sanson e D. L. Derrom, que a propunham na vertente oposta, direita, à São Paulo Railway no Vale do Rio Mogi, e o dos engenheiros Francisco de Paulo Camargo e Siqueira Campos, que a imaginaram galgando o Vale do Rio Perequê, em escolha idêntica ao Caminho do Padre José.

Acompanhando e refletindo a “onda” do movimento rodoviarista, é criado em 1934 o Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de São Paulo – DER, que veio a se constituir em uma das melhores escolas de pensamento da engenharia rodoviária nacional e celeiro de engenheiros rodoviaristas de fantástica competência.

Em novembro de 1934, o DER propõe oficialmente ao governo a implantação de uma nova e moderna ligação rodoviária entre a capital e o porto. Em maio de 1935, por meio do Decreto nº 7.162, o governo estadual confere a aprovação solicitada.

Os estudos preliminares prosseguem, agora internamente ao DER, que cria em 1938 a Comissão Especial de Auto-estradas – CEAE, sob a chefia do engenheiro Dario de Castro Bueno.

Já em decisão final, com base nos estudos anteriores e em novos estudos aerofotogramétricos especificamente encomendados, a CEAE opta por vencer a Serra através do vale do Rio Pilões, afluente do Rio Cubatão.


Foto 34 — Foto da época da abertura da Via Anchieta, início da década de 40, mostrando a despreocupação com a conservação da vegetação
florestal e o alto nível de interferência nas encostas. Predominava na ocasião a atitude de “vencer” a serra a qualquer custo. Atitude heróica,
mas que tão intensas e graves conseqüências geotécnicas trouxe para a construção e operação da estrada. (Foto Arquivo IPT)

O projeto executivo da nova estrada ficou a cargo da equipe comandada pelos engenheiros Ariovaldo Viana e Dario de Castro Bueno. Foram adotadas normas rodoviárias alemãs no que tange a largura de pista, raio mínimo de curvatura, rampa máxima, etc., mas o projeto foi todo ele concebido pela engenharia nacional representada pela escola de engenharia rodoviária em que havia se constituído o DER-SP.

Prevendo uma capacidade diária de tráfego de até 18 mil veículos, o projeto Anchieta previa as seguintes características técnicas: faixa entre cercas de 20m, pista ascendente e descendente independentes, largura de pista de 6m, raio mínimo de curvatura de 50m, rampa máxima de 6% e pavimento de concreto.

A construção efetiva da nova estrada iniciou-se em 1939, sendo sua implantação prejudicada pelas severas condições econômicas impostas pelo período da Segunda Guerra Mundial, que então se iniciava. Mesmo assim, o esforço paulista para ter sua nova estrada possibilitou que as obras não fossem irremediavelmente descontinuadas, o que permitiu, apesar de todas as dificuldades colocadas pelo trecho de serra, que a primeira pista (ascendente) fosse inaugurada em 1947 e a segunda (descendente), aberta ao tráfego em 1953.


Foto 35 — Via Anchieta poucos anos após a inauguração da primeira pista. Notar o alto grau de intervenção nas encostas
pelo desmatamento, estradas de serviços e obras da própria estrada. (Foto Acervo João Emílio Gerodetti)

Em 1945 o DER contava com cerca de 1.200 empregados diretos trabalhando no trecho de serra; estes, somados aos das empreiteiras contratadas, compunham um contingente de 5.000 trabalhadores envolvidos nos serviços de implantação da nova estrada.

A Via Anchieta foi concluída com 58 viadutos, 18 pontes e cinco túneis, porém sua intervenção nas encostas do Vale do Rio Pilões por meio de cortes foi enorme, transformando sua abertura em um verdadeiro “inferno” geotécnico. Em que pesem as experiências anteriores proporcionadas pela São Paulo Railway, pelo Caminho do Mar e pela Sorocabana, ainda não havia sido dessa vez que a engenharia rodoviária nacional acertara o melhor conceito de projeto rodoviário para a transposição das instáveis encostas da Serra do Mar, ainda que as técnicas de engenharia à disposição naquele momento já possibilitassem uma melhor adequação geológico-geotécnica do projeto e do próprio plano de obra.


Foto 36 — Foto da Via Anchieta no início da década de 60 mostrando o conceito básico do projeto, qual seja, uma
estrada encaixada em cortes na encosta. Notar o alto nível de interferência com cortes, desmatamentos e
lançamentos de material escavado nas encostas. (Foto Acervo Maria Cecília França Monteiro da Silva)

Durante todo o período de sua operação, até os dias de hoje, a Via Anchieta continua a colher os amargos frutos de sua inadequação técnica à Serra. Gerações de engenheiros do DER se esmeraram em estudar e propor medidas que alcançassem um melhor grau de estabilidade dos inúmeros taludes que se romperam e obras que foram comprometidas.

Dois casos clássicos e de extrema gravidade testemunham os seríssimos problemas enfrentados pela Via Anchieta com a instabilização, pela implantação da obra, de massas coluvionares e corpos de tálus.

Nas proximidades do km 52, cota 95, onde as pistas ascendente e descendente correm paralelas e contíguas, a implantação da rodovia implicou um corte em corpo de tálus que ocorre no local. Ainda durante os trabalhos de implantação, a movimentação deste corpo de tálus, então instabilizado, afetou ambas as pistas, exigindo na época a construção de uma precária variante. O caso foi exaustivamente estudado no final dos anos 40 e início dos 50, sendo que a estabilização do local só foi conseguida por meio de terraplenagem de alívio no talude de montante, da impermeabilização asfáltica da superfície terraplenada e da instalação de um sistema de drenagem profunda através de galerias e drenos sub-horizontais (em tubos de PVC) cravados a partir da face do talude.

Na região da cota 500, km 44,7 da pista descendente, local popularmente conhecido como “Curva da Onça”, a interceptação de um corpo de tálus implicou amplas movimentações do terreno, acarretando, ao longo dos anos 50 e 60, a inutilização de  um viaduto metálico, de um viaduto de concreto e de um muro de arrimo projetados para sustentar as duas pistas em seu traçado original.  Foram então construídas variantes, mas com o sacrifício dos raios mínimos de curvatura, o que tornou o local um dos pontos de maior incidência de acidentes da Via Anchieta. Mesmo depois dessas medidas, foi constatada a continuidade da movimentação do terreno, o que exigiu, até a década de 70, a execução de sucessivos serviços de estabilização, especialmente calcados na instalação de um sistema de drenagem interna através de uma densa rede de drenos sub-horizontais profundos.

Alguns trabalhos posteriores de terraplanagem e aterramento conseguiram uma pequena amenização da perda das condições geométricas originais do traçado. 

Caso emblemático da longa continuidade da instabilidade induzida pela estrada nas encostas do Pilões, é o recente escorregamento do km 42 da pista ascendente, que exigiu uma problemática interrupção do tráfego local e dispendiosos e complexos serviços de estabilização. Enfim, a Via Anchieta, como as anteriores transposições viárias da Serra a partir do Novo Caminho de Cubatão, também adotou a atitude de “vencer a Serra”, o que acabou por lhe valer os imensos problemas geotécnicos herdados.


Foto 37 — Via Anchieta na época da inauguração de sua segunda pista (descendente). Notar o problemático
costume de lançar encosta abaixo o material escavado de cortes a montante. Instabilizava-se a encosta cortada
e a encosta inferior atingida pelo “cômodo” bota-fora. Ver conseqüência na foto a seguir.
(Foto Acervo Fundação Arquivo e Memória de Santos)


Foto 37a — Foto recente (1999) escorregamento remontante que atingiu a Via Anchieta (km 42).
Deslizamento associado a material de escavação lançado imediatamente encosta abaixo à
época da construção da estrada. Vide foto anterior. (Foto Ecovias)

O depoimento do engenheiro Caio Dias Batista, efetivo da Secretaria de Obras na época, define com precisão essa assertiva:

"O projeto da Via Anchieta permaneceu imobilizado na prancheta dos engenheiros, na situação de utopia irrealizável, porque a técnica sozinha era impotente para abrir os caminhos que o nanquim riscara no papel. Para que a utopia tivesse o seu lugar na realização material, era necessário o elemento coragem, que impulsionou os operários e os engenheiros que desbravaram, depois de José de Anchieta, os confins da Serra do Mar. A serra foi vencida, porque os administradores colocaram recursos à mão dos operários, mas, também, porque técnicos e operários tiveram coragem, esse elemento herdado aos Bandeirantes."


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