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A DETERMINAÇÃO DE NASCENTES EXIGE UMA ABORDAGEM GEOLÓGICA, GEOMORFOLÓGICA E HIDROGEOLÓGICA

Especialmente a partir da formulação e da aplicação da legislação ambiental protetora de mananciais, em especial o Código Florestal, a questão da definição teórica de uma nascente e de sua correta identificação e interpretação em campo apresentou-se como uma demanda frequente ao corpo técnico afim, geólogos, hidrogeólogos, geógrafos, hidrólogos. Percebeu-se, entretanto, que a prática profissional necessária ao cumprimento da nova responsabilidade não era para tanto exatamente suficiente e devidamente consagrada, o que tem constituído fator causal de muita controvérsia e desencontros legais a respeito.

Por seu lado, já em sua versão anterior (1965), e persistindo em sua atual versão (2012), o Código Florestal tem sido pródigo na geração de intrincados conflitos técnicos e jurídicos decorrentes dos diferentes entendimentos e tratamentos sugeridos por suas disposições sobre as nascentes. Como exemplo desses intermináveis desencontros o movimento ambientalista propugna hoje pelo retorno da obrigatoriedade de delimitação de APPs – Áreas de Proteção Permanente no caso de nascentes intermitentes.

Essas confusões tem origem básica na insuficiência do suporte conceitual e científico com que o Código tem contado para estabelecer suas definições a respeito.

Enfim, consideradas todas as questões conceituais envolvidas, e que serão discutidas a seguir, resta para os profissionais da área o grande desafio técnico prático de, quando chamados a decidir sobre o caráter da presença de água livre ou de umedecimento na superfície de algum terreno, diagnosticar corretamente se essa água corresponde a uma nascente, ou seja, a uma manifestação da água subterrânea em superfície, ou não, e de perfeitamente caracterizá-la quanto à sua diversificada tipologia. Bom reconhecer que essa não é uma tarefa simples, que prescinda de conhecimentos teóricos e práticos sobre o tema.

Sobre essa dificuldade, vale a pena chamar a atenção, a título de exemplos, para duas situações que normalmente confundem os observadores e os têm muitas vezes levado a equivocadamente as caracterizar como nascentes, com decorrente aplicação das disposições legais de uma APP. A primeira refere-se a terrenos localmente de topografia plana ou bastante suave, com dificuldade natural de escoamento superficial de águas de chuva. Há nessas situações a possibilidade de formação de camada sub-superficial de argilas hidromórficas que, por sua grande impermeabilidade, dificultam a infiltração e proporcionam a sustentação de uma camada superficial saturada ou úmida, especialmente em períodos chuvosos. São situações que sugerem, erroneamente, uma classificação como nascente difusa. Um outro caso controverso diz respeito a olhos d’água intermitentes originados de águas de infiltração que, ao atravessar a zona superior do solo (zona de aeração) encontram obstáculos com menor permeabilidade ou mesmo impermeáveis, decorrentes da existência de variações geológicas internas horizontais ou sub-horizontais (uma lente argilosa, por exemplo, ou algum tipo de estrutura geológica). Nessas condições, e em dependência de feições topográficas, essas águas de infiltração podem resultar na formação de “lençóis suspensos” ou “empoleirados” e acabam aflorando à superfície de um terreno declivoso antes de atingir o lençol freático propriamente dito. Uma situação que, pelas definições conceituais estabelecidas, também não pode ser caracterizada como uma nascente, ainda que sugira cuidados especiais de proteção.

Em algumas situações será a paisagem geomorfológica de uma área considerada que poderá auxiliar a determinação ou não do caráter de perenidade de uma nascente ou de um olho d’água, pois em morros ou trechos de espigões de baixa ou média altura com cumeeira pronunciada e vertentes de forte inclinação, ou seja, sem um platô superior pronunciado de topografia mais suave, não se apresentam condições de alimentação do lençol freático que permitam sua sustentação em cotas mais altas ao longo de todo o ano.

Em conclusão, percebe-se do quadro descrito que a melhor e indispensável ferramenta para o exame de nascentes é o bom conhecimento teórico e prático da geologia, da geomorfologia, da hidrologia e da hidrogeologia da região investigada.

Importante de início, portanto, fixarmos algumas questões conceituais e científicas associadas à essa feição hidrogeológica conhecida como nascente.

Passo inicial está em se aceitar definitiva e oficialmente o conceito, já quase consensual, que estabelece que toda nascente corresponde a uma manifestação em superfície do lençol freático, entendido esse como a água contida em zona subterrânea de saturação, normalmente sustentada por uma camada geológica inferior impermeável. Cumprindo importante função no ciclo hidrológico, colaboram, assim, as nascentes, para a alimentação da rede hidrográfica de superfície. Mas sempre será importante lembrar que a principal contribuição do lençol freático para os cursos d’água não se dá através de eventuais nascentes existentes nas vertentes, mas sim pelas situações em que esses cursos correspondem ao nível hidrológico de uma região, e como tal corre sobre a superfície do próprio freático. Em outras palavras “lambe” o freático.

Quanto à sua disposição no terreno, faz-se distinção entre uma nascente pontual, quando a surgência de água se dá de forma concentrada, e uma nascente difusa, quando vários são os pontos de surgência, como no caso das veredas dos cerrados brasileiros. As nascentes caracterizam-se ainda quanto à continuidade de seu fluxo, como perenes, intermitentes (ou temporárias) ou efêmeras. Sendo que as intermitentes seriam aquelas de caráter sazonal, que mantém-se ativas somente durante e logo após o período mais chuvoso, e as efêmeras, aquelas de curta existência, ou somente como resultado imediato e breve de um determinado episódio pluviométrico, ou aquelas cujo período inativo de intermitência se estende por anos.

O Código Florestal promove uma distinção pouco clara entre nascente e olho d’água:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por:

XVII - nascente: afloramento natural do lençol freático que apresenta perenidade e dá início a um curso d'água;

XVIII – olho d’água: afloramento natural do lençol freático, mesmo que intermitente.
A seguir o Código determina:

Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:

IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d'água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros;

O que permite interpretar que o atual Código distingue nascente de olho d’água pelo fato desse ser uma surgência do lençol freático que não gera um curso d’água, mesmo em caráter de perenidade. Analisando-se a lei ao pé da letra ficaram fora da obrigação de delimitação de APPs as nascente e olhos d’água não perenes, ou seja, intermitentes ou efêmeros, uma novidade em relação ao Código anterior.

De outra parte, faz-se necessário acrescermos mais alguns elementos a esse exercício analítico, e sublinhar, por sua importância na matéria, o seguinte entendimento hidrogeológico: todas nascentes e olhos d’água representam sangramentos do lençol freático, ou seja, constituem pontos de rebaixamento forçado do nível freático.

Considerando a referida relação das nascentes com o nível freático, e tendo em conta que seria raro e incomum o fato de ser interessante para o Homem e para o Meio Ambiente um rebaixamento do nível do lençol freático, é hoje de suma importância que se traga em consideração um outro fator de enorme importância: a natureza das nascentes ou olhos d’água, o que, no caso sugere distingui-los enquanto de origem natural ou de origem antrópica; ou seja, nesse último caso, aquelas surgências do lençol freático que tenham sido originadas de ações diretas ou indiretas do homem.

Tomemos o exemplo de uma boçoroca, que se trata de uma ravina de erosão profunda que atingiu o lençol freático, e tem sua evolução remontante a ele associada. Pois bem, as boçorocas – terríveis feições erosivas responsáveis por graves problemas urbanos e rurais, incluindo o assoreamento de drenagens - tem essencialmente origem antrópica, ou por desorganização/concentração de drenagens superficiais, ou por desmatamento generalizado... A nascente produzida por uma boçoroca implica o sangramento do lençol freático e seu respectivo rebaixamento em sua área próxima. O que se dirá de um campo de boçorocas.

Um outro exemplo de uma nascente antrópica: uma escavação vinculada a uma atividade de mineração, ou a uma terraplenagem para instalação de uma obra civil, ou a uma simples área de empréstimo, muitas vezes atinge o nível freático, o que implica a instalação de uma surgência não natural do freático. Tem essa a mesma decorrência negativa e problemática de rebaixamento do lençol freático próximo. Em áreas urbanas e peri-urbanas essas surgências induzidas, além de graves problemas geotécnicos associados, acabam por retirar uma considerável quantidade das reservas estratégicas de água subterrânea de ótima qualidade e lançá-las desperdiçadamente logo à frente em um córrego de águas poluídas.

Ou seja, não faz o menor sentido o entendimento que leve a considerar nascentes ou olhos d’água de origem antrópica como feições hidrogeológicas a serem conservadas e protegidas por APPs. Pelo contrário, muito mais interessante para a sociedade e para o meio ambiente uma decisão de proteção das águas subterrâneas, a ser obtida ou por ações de tamponamento dessas nascentes, reconformando no que for possível a topografia original para o caso das boçorocas e escavações a céu aberto, ou pela completa impermeabilização/estanqueamento de escavações profundas, como no caso de pisos de subsolos de edificações urbanas, túneis e demais obras subterrâneas, nas duas situações fazendo com que o lençol freático local retorne à sua posição e volumes naturais.

Voltando à questão temporal, e mais especificamente, às nascentes intermitentes. Não há coerência em pretender-se estabelecer uma regra comum a todas as situações para se decidir se esse tipo de nascente deva ou não implicar a obrigatoriedade de delimitação de uma APP. Há no caso que se ter em conta, primeiramente, a localização geográfica/físiográfica da nascente intermitente considerada, o que vai determinar o grau de sua importância social e ambiental. Exemplificando, uma condição é avaliarmos o papel de uma nascente intermitente na Amazônia ou no Sul-sudeste pluvioso, onde não expressam contribuição notável aos recursos hídricos de superfície ou ao abastecimento humano, outra condição é avaliarmos essa nascente em um clima semi-árido, onde, apesar de sua intermitência, pode representar recurso hídrico inestimável às necessidades humanas por sua capacidade de alimentar sistemas construídos de reservação hídrica duradoura.

Outro aspecto fundamental a ser observado é justamente a temporalidade da referida intermitência. Não há qualquer sentido social e ambiental em se determinar a interdição de aproveitamento de uma área por essa apresentar o histórico de uma nascente com intermitência da ordem de anos. Esse período longo de intermitência nem permite a configuração de nichos ecológicos associados a esse tipo de nascente. Talvez um bom parâmetro temporal para essa diferenciação seja o intervalo de 2 anos.

Por fim, há que se avaliar as natureza do meio em que estaria instalada nossa nascente intermitente. Meio rural ou espaço urbano? Esses ambientes são tão diversos em suas características, funções e demandas que, na verdade, estão a sugerir há muito tempo a necessidade de formulação de um Código Florestal específico para as cidades. Mas enquanto a inteligência brasileira não nos provê essa virtuosa providência, fiquemos no contexto do atual e generalizante Código. Pelo que, diante das necessidades urbanas típicas, também carece de sentido imobilizar uma área, pela adoção de uma APP a ela associada, pelo fato de haver testemunhos que ali esteja instalada uma nascente intermitente com período de intermitência, por exemplo, superior a 1 (um) ano.

Cumpre chamar a atenção para um fator hidrogeológico importantíssimo: a dinâmica de uma nascente não está associada restritamente ao que possa acontecer no círculo de 50 metros definido por sua APP correspondente. Essa dinâmica está associada a toda a bacia de contribuição a que a nascente está vinculada. Ou seja, uma política de proteção de nascentes envolve tão mais essencialmente do que uma providencial delimitação de uma APP, um amplo programa de recuperação da capacidade de infiltração de águas de chuva em toda a bacia de contribuição.

De todos esses aspectos considerados, talvez se possa ter como diretriz de melhor bom senso e conteúdo científico as seguintes novas orientações a serem adotadas e explicitadas claramente pelo Código Florestal:

- surgências do lençol freático originadas de ações antrópicas não devem ser consideradas nascentes a serem protegidas, mesmo atendendo as condições de perenidade. A melhor indicação no caso estaria na estratégia de proteção dos aqüíferos subterrâneos com o tamponamento das referidas surgências;

- nascentes intermitentes poderiam vir a ser objeto de delimitação de APPs correspondentes quando situadas em regiões de clima semi-árido e com período de intermitência inferior a 2 (dois) anos; nos demais domínios morfoclimáticos do país as nascentes intermitentes deverão ser objeto de delimitação de APPs correspondentes caso apresentem período de intermitência inferior a 1 (um) ano;

- nascentes intermitentes situadas em espaço urbano deveriam ser objeto de delimitação de APP correspondente caso apresentem período de intermitência inferior a 1 (um) ano, adotando como área protegida círculo de 20 metros de raio;

- nascentes efêmeras não deveriam ser objeto de delimitação de APP correspondente.

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